Conheço poucos restaurantes que oferecem uma área de lazer para crianças. Quando encontro um, meus olhos curiosos são atraídos para ela. Nesta, especificamente, havia três crianças – dois meninos e uma menina – de tamanhos semelhantes. Arriscaria dizer que tinham entre oito e nove anos. Certeza, não tenho. Enquanto me dirigia ao local das mesas, fui olhando a parte reservada aos pequenos: piso de madeira, prateleiras na parede da esquerda e cestos, ambos repletos de brinquedos. A parede da direita separava-me deles. A mesa em que me acomodei beirava a porta do espaço infantil. Minha companhia humana estava atrasada, então, fiquei esperando com a eletrônica, meu celular.
As vozes das crianças disputavam minha atenção com as mensagens de texto do telefone. Do lado de cá da parede, meu indicador direito deslizava pela tela do dispositivo, trazendo amenidades variadas. Do lado de lá, criava-se um mundo novo: uma floresta em que três irmãos precisavam se defender contra inimigos poderosos, linguisticamente definidos por eles.
– Finge que a gente é irmão e mora numa floresta... – foi a voz da menina
– Finge que aqui é a nossa casa, e que a gente precisa se defender dos inimigos. A gente precisa de armas! – um dos meninos disse aumentando o tom de voz. – Eles querem matar a gente!
– Por que que eles querem matar a gente? – perguntou a outra voz masculina.
– Porque eles são maus – respondeu o rapazinho que tinha falado primeiro.
Claro que eles são maus, pensei eu, se não fossem extremamente perigosos ninguém precisaria de armas. O comentário sobre a previsão de temperatura daquele dia já não interessava frente à ameaça inimiga. Era preciso conhecer as estratégias de defesa desses pequenos heróis, afinal, se eu também estava na floresta, precisaria da proteção deles. Baixar a cabeça e fixar os olhos no telefone foi uma boa estratégia para não ser incomodada por outros humanos. Permitiu-me aguçar os ouvidos para o que interessava: a conversa entre os três valentes.
A distribuição do arsenal bélico foi rápida: um menino ficava com a pistola, a menina com um arco e flecha e o outro menino com um estilingue. Não sei dizer se o restaurante de fato tinha tais equipamentos, duvido. De qualquer forma, algo ali virou uma pistola; outra coisa, um arco e flecha. Iniciou-se uma discussão sobre a escolha do estilingue:
– Usa esse aqui – disse o menino.
– Por quê? Qual que é a diferença entre esse e esse? – perguntou o outro.
– Esse aqui é melhor. É profissional. Vamos! – respondeu o primeiro.
O que fazia com que um fosse comum, e o outro, profissional é coisa que só eles sabiam. Contentei-me com a expertise do autor mirim, cuja voz comandava a história. Como não ouvi mais as vozes dos pequenos, imaginei que tivessem ido ao ataque. Digitei um “kd vc?” para a amiga que almoçaria comigo. “atrasada. chegando. 10 min. bj!” foi a resposta. “ok”, minha réplica. Eis que as vozes dos aventureiros da floresta se faziam ouvir de novo.
O menino da voz dos comandos disse que ia usar uma tal faca que tinha sido do pai deles:
– Essa aqui, ó, que ele me deu.
Depois dessa frase, a menina perguntou o que tinha acontecido com o pai deles. O rapazote respondeu que ele havia sido raptado. E assim, de uma pergunta a outra, o contexto da narrativa se criava.
– Mas por que raptaram nosso pai? – a menina ainda precisava de informações.
– Para tirar o DNA dele.
Silêncio total. Dos dois lados da parede.
Aqui, eu me perguntando de onde vinha essa frase, saída da boca de um ser em meninice. Ali, penso que o silêncio fosse um misto de medo com vergonha de dizer que não sabiam o que era o tal do DNA. Pelo tom grave da voz de quem falou, só poderia ser sério.
– Cheguei!
Um corpo se aproximou de minha cadeira, arrancando-me da floresta onde os três guerreiros enfrentariam o inimigo raptor de pai e extrator de DNA. Quase lamentei a chegada da amiga, que atrasou bem menos do que os dez minutos programados. Não fosse ela me contar histórias de outro mundo, de gente grande, em que desafios e perigos são outros, igualmente assustadores, eu teria voltado para casa frustrada com a história não ouvida.
Cada um tem suas próprias histórias. Que delícia passear por elas. Esse texto é minha gratidão ao pequeno trio, que me presenteou com uma história, enquanto eu aguardava por outra.
Elissa Khoury
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